O potencial passivo jurídico da PEC 32/2020, por Rogério da Veiga

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Artigo de Rogério da Veiga publicado originalmente no site JOTA.

A PEC 32/2020, conhecida como Reforma Administrativa, foi encaminhada pelo Governo Federal à Câmara dos Deputados em setembro de 2020, sendo aprovada na Comissão de Constituição e Justiça. Agora, será avaliada por uma Comissão Especial para, em seguida, ser apreciada no plenário da Casa.

O cerne da proposta versa sobre a criação de vínculos entre servidores públicos e o Estado e as prerrogativas em relação a estes vínculos. O Art. 39-A estabelece cinco tipos de vínculos com o Estado:

I – vínculo de experiência, como etapa de concurso público;

II – vínculo por prazo determinado;

III – cargo com vínculo por prazo indeterminado;

IV – cargo típico de Estado; e

V – cargo de liderança e assessoramento.

A grande diferenciação se dá entre os cargos típicos de Estado e os demais. Aos típicos de Estado, está assegurada a estabilidade, a irredutibilidade de jornada com redução salarial, a vedação à realização de qualquer outra atividade remunerada e as atividades privativas desses servidores não podem ser terceirizadas.

Essas limitações não estão presentes nos demais vínculos. Não têm estabilidade, a remuneração pode ser reduzida com redução de jornada, podem realizar outras atividades remuneradas e suas atividades podem ser completamente terceirizadas.

Essa é a essência da proposta: definir um conjunto restrito de atividades típicas de Estado a serem desempenhadas por servidores em cargos típicos de Estado e dar liberdade total para definir como as demais atividades serão desempenhadas, se por servidores em cargos com prazo indeterminado, se por meio de termos de cooperação com entidades públicas ou privadas – e a contratação de pessoal ficaria por conta dessas entidades – ou se por servidores temporários para atividades de caráter temporário ou sob demanda.

A PEC determina a regulamentação por lei em três artigos:

  1. no Art. 39, para definir: I – gestão de pessoas; II – política remuneratória e de benefícios; III – ocupação de cargos de liderança e assessoramento; IV – organização da força de trabalho no serviço público; V – progressão e promoção funcionais; VI – desenvolvimento e capacitação de servidores; e VII – duração máxima da jornada para fins de acumulação de atividades remuneradas. (Lei Complementar)

  2. no Art. 39-A, para estabelecer os critérios para definição dos cargos e atividades típicas de Estado (Lei Complementar)

  3. no Art. 37-A, para a regulamentação dos instrumentos de cooperação (Lei Ordinária)

Merecem atenção três pontos com elevado potencial de gerar insegurança jurídica e, por consequência, um grande número de ações judiciais:

  1. As regulamentações previstas no Art. 39 e no Art. 37-A dependem da definição de quais cargos e atividades serão típicas de Estado, prevista no Art. 39-A. Não é possível definir a política remuneratória e de benefícios, a organização da força de trabalho, a progressão e a promoção nem a política de capacitação sem saber quais serão típicos de Estado e quais não serão. O mesmo vale para os instrumentos de cooperação, que são proibidos para atividades privativas de cargos típicos de Estado.

  2. Além de dependerem da Lei Complementar Federal prevista no Art. 39-A, estados e municípios têm competência legislativa plena até que seja editada a lei federal. Uma vez editada lei federal, estados e municípios deverão se adaptar ao seu conteúdo.

  3. A PEC não prevê competência legislativa plena dos estados e municípios para regulamentar o previsto no Art. 39-A.

A chance de que essas diferentes leis entrem em conflito se não forem feitas em ordem e de maneira coordenada é enorme.

É comum a demora na edição de leis complementares. Por exemplo, a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, previu uma lei complementar para regulamentar a perda de cargo de servidor estável por meio de avaliação periódica de desempenho e, até o momento, após 23 anos, essa Lei Complementar não foi aprovada pelo Congresso Nacional. Nada garante que a Lei Complementar para definir os cargos típicos de Estado (Art. 39-A) ou a Lei Complementar que estabelece regras para gestão de pessoas (Art. 39) sejam aprovadas em curto espaço de tempo.

Isso não impede que estados e municípios legislem sobre os temas previstos no Art. 39 e no Art. 37-A. Com isso, serão criados dezenas, centenas ou milhares de regimes jurídicos instáveis que poderão ser alterados a qualquer momento por uma lei federal aprovada.

Os governos subnacionais poderão aprovar leis, regulamentando a terceirização de atividades por termos de cooperação e, posteriormente, ser aprovada uma lei federal determinando que aquela atividade não poderia ser terceirizada por ser típica de Estado. O mesmo vale para regras de gestão de pessoas que podem ser aprovadas inferindo que determinada atividade não seria típica de Estado, mas a lei federal dispôs em contrário.

Com relação à definição dos cargos típicos de Estado (Art. 39-A), a PEC não prevê competência plena aos estados e municípios. Temos, então, um impasse: os estados e municípios têm a necessidade de contratar pessoal para prestar os serviços públicos sob sua responsabilidade; a Constituição, se aprovada a PEC 32/2020, prevê cinco vínculos entre estados e servidores, mas não define quem se enquadra em cada tipo de vínculo porque precisa de uma Lei Complementar federal para tal e proíbe estados e municípios de criarem definições próprias e não há razões para acreditarmos que uma Lei Complementar dessa complexidade seria aprovada rapidamente.

Como, então, contratar pessoas nesse meio tempo? Quais os vínculos das pessoas contratadas nesse hiato entre a aprovação da PEC e a aprovação da Lei Complementar? Apesar de não prever expressamente a autonomia legislativa plena de Estados e Municípios, a PEC 32/2020, na prática, obriga os entes subnacionais a tomarem a decisão sobre o que é típico de Estado para contratar pessoas, regulamentar a gestão de pessoas e determinar a forma de prestação do serviço público, se diretamente ou via terceirização.

O desenho previsto na PEC 32/2020 torna precário todos os atos referentes aos servidores públicos entre a aprovação da PEC e a aprovação das leis federais. Cabe repetir que não há prazo para a aprovação dessas leis, podendo levar décadas, como é o caso da lei que regulamenta demissão de servidor por insuficiência de desempenho.

Uma das críticas comuns à PEC 32/2020 é a ausência de um estudo sobre os impactos da PEC nos serviços públicos, tanto em nível federal quanto estadual e municipal. Esse é um potencial impacto da PEC que os deputados e senadores devem buscar compreender e se debruçar sobre.

O ideal é não aprovar a PEC 32/2020 e fazer a reforma começando por mudanças mais concretas na organização do Estado, como a regulamentação da avaliação de desempenho, a regulamentação do teto salarial, medidas para reduzir as desigualdades dentro do Estado, melhorias na relação entre Executivo, órgãos de controle, Ministério Público e Poder Judiciário para estimular inovações no serviço público e mais entregas para a população, redução no número de carreiras, aumento da mobilidade entre diferentes órgãos, melhoria das relações interfederativas e de cooperação.

No entanto, se a decisão do Congresso for por levar adiante essa proposta, é fundamental evitar essa insegurança jurídica com uma alteração simples: as mudanças na PEC passariam a valer somente depois da aprovação das leis federais previstas.

*ROGÉRIO DA VEIGA – Vice-presidente da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental - ANESP